Lockdown

Fecha tudo!

Você diarista, contente-se com R$ 600. Estamos salvando sua vida. Não seja gananciosa. Você motorista do uber, você pedreiro, você advogado, você confeiteira… casa, já! Ah, você advogado não tem direito aos R$ 600, viu!? Não seja desonesto. Deixe pra quem precisa. E não seja avarento, seu materialista insensível. Não está vendo que já morreram oitenta mil pessoas no Brasil?! Seu merda… fiquei em casa e não reclame. Grande coisa não conseguir pagar seu financiamento do automóvel, seu plano de saúde, suas prestações… é só negociar.

Fecha tudo!

Não tem como pagar o aluguel do escritório? Negocia. Use essa sua cabeça, poh. Como assim o locador só deu 50% de desconto. Que insensível. Que absurdo.

Fecha tudo!

Não, espera… deixa o produtor de leite e o posto de gasolina aberto. Ah… o mercado e a farmácia também. Precisamos muito deles. Ah, o frigorifico também. Não interessa que seja um dos locais de maior foco de contaminação… deixa aberto. É essencial. Essencial pra quem? Pra sociedade, poh… não é pra mim, não.

Ei, não mexe no meu salário. No meu não. Tenho direito constitucional de não ganhar um centavo a menos. No meu você não vai mexer. Não mexe nos meus investimentos! Sai daí.

Fecha tudo! Quase tudo!

E o técnico de internet que não chega? Como vou mandar meu trabalho pro sistema eletrônico?

Fecha tudo, menos os hospitais né. Precisamos deles. São nossos heróis. Deixa o transporte coletivo ativo só pra eles. Os motoristas e os cobradores não vão se contaminar. Nem os vigilantes, o pessoal da limpeza, nem os mecânicos. Mas só os necessários.

Fecha tudo, menos os bancos. Bancos são necessários. E todo mundo sabe que fila de banco é imune.

Fecha tudo, adia tudo. Não, essa dor aí que tu tá sentindo vai passar. Não precisa ir no hospital, até porque o foco é covid.

Fecha tudo! É simples. Até quando? Não interessa. A vacina está logo ali. Fecha e deixa de ser negacionista.

Fecha tudo. Quase tudo. Mas deixa tudo que eu tenho direito à disposição, posso precisar.

Negacionismo

A negação da realidade não é um privilégio dos nossos tempos. Infelizmente (ou felizmente). Também não é algo que se limite a um grupo ou a uma região, tampouco a um contexto social ou político. Infelizmente.

Negar a realidade é uma consequência da imaturidade. É uma disfunção de forças entre o que se vê (ou se entende) e o que se gostaria de ver (ou de entender). Num mundo onde muito do que se acredita não é paupável e decorre unicamente de palavras e discursos ou de afirmações de terceiros, a realidade torna-se efetivamente difícil de ser compreendida.

Imagine que um cientista diga que usar máscaras é potencialmente bom contra a covid 19 e outro diga que é inócuo, mas prejudicial por outros motivos. Cada um apresenta sua tese com fundamentos técnicos que nós, inaptos, não podemos valorar adequadamente. Em quem acreditar? Provavelmente se escolherá uma das duas soluções: (1) a tese com maior número de adeptos, o que tornaria a ciência uma espécie de sufrágio, ou (2) a que nos confortar melhor. Veja que aqui também, como em quase tudo a nossa volta, há uma opção entre o pessoal e o social, entre melhorar-se pessoalmente para entender e assimilar o que os outros entendem.

Quando o Renascimento trouxe a ideia de que a razão (e a ciência) resolveriam os problemas da humanidade, deixou de considerar que a ciência (por ser humana) tem limites humanos. Numa sociedade orgulhosa, a ciência se envaidecerá. Numa sociedade avarenta ela se venderá. Numa sociedade ideologizada se ideologizará. E por aí vai… A razão é insuficiente para a humanidade, está claro. Ela não é absoluta como se gostaria e isso muda a sua utilidade. Em que pese proporcionar melhoria significativa no aspecto material, ela depende, para produzir efeitos benéficos internamente em cada um de nós, de valores morais e de estabilidade emocional. É uma das bases deste tripé.

Há quem acredite que o negacionismo seja um reflexo da falta de educação. Outros da falta de estrutura emocional resultante da fragilidade familiar dos nossos tempos. Alguns pensam que negacionistas são optantes de uma corrente.

Negacionistas são imaturos, já o afirmamos. Contudo a imaturidade não é um elemento absoluto e inflexível. Podemos ser maduros emocionalmente e imaturos musicalmente e, diante disso, negar a genialidade de Mozart, simplesmente não gostar de música erudita. É certo? Pra mim não. E pra você?