Mundo Bipolar

A Guerra Fria (período que se estende entre o fim da Segunda Guerra e o fim da União Soviética) foi marcada pela existência de uma bipolaridade ideológica, com os EUA liderando o bloco capitalista e a URSS o bloco socialista. Ao final, em 1991, a URSS dissolveu-se, marcando o fim da bipolaridade com a “vitória” do capitalismo.

Não é difícil percebermos que a bipolaridade esteve presente na História antes desse período também. Ela foi marcada, por exemplo, no tempo do Império Romano, entre os imperialistas e os anti-imperialistas. Foi marcada mais tarde entre cristãos e muçulmanos, nas Cruzadas. Mais adiante entre Católicos e Reformistas. Depois entre Absolutistas e Iluministas. Depois ainda entre monarquistas e republicanos. Veja, há incontáveis exemplos.

Carl Gustav Jung ensinou que estamos submetidos ao inconsciente coletivo que, até que tenhamos consciência da sua presença, nos influencia sem nossa percepção. Parece que a humanidade sente-se confortável num mundo bipolar, onde lados claramente estabelecidos lhe dão conforto e segurança do que esperar.

No presente ainda temos bipolaridades explícitas. A mais palpável é entre direita e esquerda, uma bipolaridade que perdeu o sentido, seja pela inexatidão das suas pautas, seja pela instabilidade conceitual. Contudo, penso que a bipolaridade efetiva do nosso tempo se dá entre autocratas e democratas, ou seja, entre aqueles que preferem impor os valores e os sistemas que defendem e aqueles que preferem debatê-los, elaborá-los e, se for o caso, elegê-los.

Há um bloco autocrata claro no mundo, composto por China, Rússia, Coreia do Norte, ditaduras africanas e latino-americanas e seus simpatizantes. E há o bloco democrata, que transita em sistemas mais ou menos liberais, mais próximos ou mais distantes da social-democracia, mas ainda assim democrata, representado pela maioria dos países europeus, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Japão e alguns outros.

O Brasil ainda não escolheu o seu lado. Temos um regime autodenominado capitalista, onde o Estado regula (e quase monopoliza boa parte dos sistema produtivos), produzindo o que há de pior nas economias de mercado (que é a falta de concorrência por imposição estatal) e nas economias excessivamente reguladas (que é a dificuldade dos pequenos crescerem formalmente). O mais interessante nessa reflexão é que não faltam argumentos nobres para a defesa desse sistema híbrido e nefasto, mas tais argumentos só se sustentam quando dissociamos a realidade do ideal, acreditando que podemos construir um mundo justo a partir de injustiças e distinções.

Reflete aí: o Brasil tem se aproximado do mundo democrata ou autoritário?! Que te parece?!

O pavio está aceso

É reconhecido historicamente que brasileiros não são democratas. Só no Século XX tivemos décadas de afronto aos valores democráticos, a começar pela República Velha que era apenas nominalmente democrática. Depois dela, golpe de Getúlio (duas vezes), golpe militar, eleições indiretas e por aí vai. Se contarmos o tempo em que vivemos com algo próximo à democracia não chegamos a 30 anos.

Prestando atenção, vemos que não é só no aspecto eleitoral que não somos democratas. É também no aspecto pessoal. É muito comum vermos o brasileiro médio abusar da sua condição, seja ele de que classe social, etnia, instrução for. Exemplo: o motorista de coletivos, se não gostar de determinado passageiro, finge que não o vê. Outro exemplo: o atendente de balcão que pode escolher, escolhe atender quem mais lhe beneficia. São tantos os exemplos que é desnecessário reproduzi-los. O que é necessário é percebermos que até a análise sobre isso é antidemocrática, pois ela costuma falar em “classes sociais”, em “cor de pele”, em “gênero” e se vê que, de forma geral, isso não influencia a postura antidemocrática e abusiva por aqui. Quase todos abusam ou são abusados.

É aqui que queria chegar.

Em 2016, Dilma Roussef consultou os ministros militares sobre a possibilidade de resistirem ao seu impedimento. Foi informada de que isso não seria possível. Foi impedida de continuar na Presidência e ganhou o beneplácito de manter os seus poderes políticos. É uma demonstração inequívoca, por parte dela, de desrespeito institucional. Os governos petistas foram marcados por invasões de terras financiadas com dinheiro público e costumeiramente toleradas. Outra aversão à institucionalidade democrática.

Em 2022 Bolsonaro fez o mesmo. Bolsonaristas pediam sem constrangimento intervenção militar. Novamente as Forças Armadas se manifestaram contrárias. Vejam que as posturas são similares, embora praticadas por polos rivais (como ocorria há 100 anos entre fascistas e comunistas).

Por que agora as instituições estão reprimindo apenas os bolsonaristas (que merecem julgamento, mas não menos que os petistas)? Porque, como dissemos no segundo parágrafo, o brasileiro gosta de abusar e o faz sempre que pode. Não somos democratas. Não respeitamos a vontade da maioria. Não respeitamos a representatividade. E há discursos prontos para isso, inclusive para desrespeitar a vontade da maioria sob defesa de uma “democracia” que não é democrática, normalmente elitista e estadista, que trata as pessoas que trabalham no país como parasitas, ao invés de assim tratar os sanguessugas que pouco fazem além de viver às custas do dinheiro público em seus cargos e privilégios, com demagogia e hipocrisia explícitas.

O que mais me preocupa, neste momento, é que por longas décadas conseguimos diminuir a violência política e institucional. Tivemos por nossa História incontáveis revoluções e movimentos armados. Foram dezenas. Nos últimos 60 anos isso tem diminuído, mas parece que o Estado brasileiro (sua cúpula) não entendeu que a maioria da população continua sendo enfrentada por abusos estatais…

Isso é o que mais preocupa. A democracia é relativamente simples. É a representação popular através do voto e o respeito da decisão da maioria. Quando uma minoria se aloja no poder com artimanhas institucionais e desrespeita os valores da maioria, acende-se um pavio.

O pavio está aceso.

Vida fácil, mas complexa

Há 100 anos a humanidade enfrentava a ruína dos regimes monárquicos tradicionais e iniciava a implantação das repúblicas democráticas ou das monarquias parlamentares democráticas, especialmente no Ocidente. Estas mudanças produziram debates ideológicos que persistem, criando regimes mais autoritários, como o fascismo e o comunismo, em oposição ao regime liberal que afrontava a monarquia. É um bom tema para outra reflexão percebermos que as raízes do autoritarismo monárquico (não que todo monarquista assim fosse, mas o regime assim era) persistem nos regimes autocráticos que odeiam o liberalismo por questionar o mau uso das liberdades individuais.

Faz menos de um século que os regimes colonialistas passaram a ser questionados, que se criou um órgão internacional de meação entre as nações para que se evitassem as guerras, que os direitos do trabalhador passaram a ser regulados, que o meio ambiente entrou no debate social e filosófico, que as mulheres ascenderam ao mesmo nível social dos homens, que a educação escolar popularizou-se, que o ideal de igualdade étnica passou a ser debatido, que as religiões buscam deixar de ser causa de conflitos constantes. Somos seres sociais, como bem ensinou Aristóteles há 2400 anos, e estamos aprendendo muito mais nos últimos três séculos sobre isso.

A vida hoje é muito mais fácil para nós do que foi para nossos avós. Conseguir escola, ser atendido no posto de saúde, coletar uma informação qualquer, chamar autoridades para atender uma demanda, reclamar de uma má prestação estatal ou privada, encontrar trabalho, proteger-se da violência, comprar comida… são tantas as facilidades a mais que não precisamos de muito esforço para admitir que evoluímos estruturalmente.

Hoje a vida é mais fácil e mais complexa. Antes era mais difícil e mais simples. O que se pretendia na vida era mais uniformizado, idealizado pela coletividade. Os dilemas eram menores. Todos deviam casar, por exemplo. Não havia profundas reflexões sobre isso. Contudo, os casamentos difíceis deveriam ser suportados por toda vida e assim eram. Veja que simples decisão e que difícil condição.

As facilidades do nosso tempo criaram muitas ilusões. Os seres humanos não são melhores porque a vida em sociedade ficou mais fácil. Não percebem que ainda precisamos de objetivos, de esforço de superação, de consciência das condições existenciais de causa e efeito. Deixamos de perceber que uma família feliz não é acidente, mas fruto de muito esforço dos que a conduzem. Deixamos de reconhecer que não há acasos capazes de tornar uma pessoa melhor do que ela se esforça em ser… e assim é também com as sociedades.

A vida mais fácil do nosso tempo precisa conscientizar-nos de que existem demandas impossíveis, como a paz absoluta, a igualdade absoluta, a distribuição igualitária de riquezas, a felicidade natural. Jamais haverá isso nesse planeta. Nem mesmo nos regimes mais autoritários se conseguiria impor tais resultados.

Somos diferentes e vivemos a era do respeito às diferenças. Precisamos nos conscientizar de que o mundo possível é este em que cada diferença possa ser vivida. Neste mundo possível, os grupos de diferentes valores precisam ser separados se for impossível a sua convivência, mas integrados sempre que amadurecidos para tal. Sempre haverá os mais e os menos maduros, os mais e os menos violentos, os mais e os menos humanos. Sempre será necessário punir os que desrespeitam os demais.

Quando os mais maduros abdicam da liderança e da governança, serão os mais despreparados que governarão. Não há mais espaço, no nosso tempo, para que as melhores pessoas se abstenham de fazer a sua parte.


Por que existe a lei?

A primeira lei escrita conhecida é o Código do imperador babilônico Hamurabi, datando de aproximadamente 1700 a.C. Este conjunto de regras ficou conhecido como Lei do Talião, porque foi literalmente talhado numa grande para que todos soubessem o que era permitido e o que não era – isso numa época em que pouquíssimos sabiam ler.

Ao longo do tempo as sociedades foram aprimorando-se e aprimorando o uso das normas jurídicas. A principal função da lei passou a ser, especialmente nas sociedades ocidentais dos últimos 300 anos, regular a relação do Estado com os cidadãos, estabelecendo limites ao poder estatal que sempre foi absoluto. Vejam: o aprimoramento social e civilizatório é uma busca de valorização do indivíduo, conferindo-lhe cada vez mais autonomia e, quando essa liberdade é má utilizada, responsabilizando-o.

Sempre existiram os mais autoritários que entendem que cabe ao Estado tudo controlar e regular. Creio seja um resquício inconsciente daquilo que a sociedade historicamente sempre foi, controlada por uma autoridade tida como melhor que o povo (divina para uns) e por isso legítima para tudo dizer e determinar.

Pois os últimos 300 anos foram marcados pela valorização do indivíduo, seja de que classe social for, seja de que origem cultural ou religiosa for. Mais recentemente esta valorização alcançou debates de gênero, de etnia e até de condição de saúde.

A lei é, portanto, um instrumento de garantia de direitos mínimos para o cidadão, o indivíduo. Por ela se dá a cada um a consciência do que pode ou não realizar. Sem ela voltamos ao poder absoluto do governante, que é justamente o oposto da razão existencial das leis.

O Brasil é o país com o maior número de normas jurídicas do mundo e há uma razão para isso: quanto mais complexo o ordenamento jurídico, mais o cidadão depende da autoridade do Estado para dizer o seu direito. Quando é simples a compreensão do certo e do errado, simples serão os debates sobre quem está de acordo com a lei… contudo, naturalizamos a necessidade de o Estado tudo nos dizer, tudo nos orientar, tudo regrar.

Então, no fundo, nosso regime ainda é uma simulação de liberdade, ainda nos condicionamos à autoridade, trocando, de tempo em tempo, quem nos governará.

Já no Séc. XIX refletiu o historiador francês Alexis de Tocqueville: “o cidadão pensa-se livre por ter livremente escolhido o tutor (governante). Mas não é livre quem é tutelado”.

Não é que as pessoas não precisem de normas e comandos. Não é essa a proposta de sociedade moderna, democrática e republicana. É que as pessoas devem se tornar autônomas o suficiente para que ninguém lhes precise dizer como devem agir. A sociedade moderna ideal é aquela em que, cada um sabendo o que pode e não pode realizar, vive livre dentro deste espaço existencial, sem que precise em momento algum pedir, muito menos implorar ao Estado ou a qualquer outro ente para que exista plenamente.

Como vamos nos tornar autônomos, livres enfim, se tudo nos é determinado e dificilmente compreendido? Como podemos saber o que podemos ou não realizar se os entendimentos mudam a todo instante, se as incontáveis normais são colidentes, se as autoridades têm sempre mais direitos que o conjunto de valores que se pretende implantar?

O Brasil é um país violento, elitista e abusivo. E nunca no Século XXI estivemos tão próximos do Séc. XIX como agora, ainda que o discurso corrente seja alucinadamente de liberdade e democracia. A lei por aqui continua servindo de instrumento reacionário, impedindo que nos tornemos o que sempre sonhamos e temos condição de ser, nos limitando como indivíduos e como sociedade, padronizando nossa gente para que caiba no interesse dos nossos governantes.

O Parlamento

Na Inglaterra do Século XIII, a nobreza e as camadas sociais que viriam a ser chamadas de burguesia quiseram participar do governo e, assim, diminuir o poder absoluto que estava na mão do monarca. Eduardo I, convencido de que nobres e clérigos deveriam ser ouvidos sobre certas demandas, decidiu criar um órgão de elaboração das leis. Surge assim o primeiro Parlamento, um órgão da elite, onde o poder central do monarca poderia ser enfrentado e diminuído.

Cinco séculos depois o resto da Europa Ocidental começava a enfraquecer o Absolutismo, provocados pelos ideais Iluministas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A França é a primeira a dar ao Parlamento um poder de Estado superior ao monarca. EUA, pouco antes, cria um Parlamento de representantes do povo eleitos por sufrágio. É o início de um longo processo que, ainda em nossos dias, está em implantação e elaboração e que não toca a todas as sociedades de forma homogênea.

Lá na breve Democracia Clássica dos atenienses as assembleias eram diretas e todos se manifestavam em praça. Podemos crer que já naquela época eram conduzidas as assembleias pelas lideranças para os fins que pretendiam e que as ideias mais radicais ou inovadoras eram reprimidas. É absolutamente provável que fosse assim. Contudo, era o próprio cidadão quem lá estava.

Na Democracia moderna isso é impossível, por isso o Parlamento se tornou o órgão de representação mais expressivo da população e de suas ideias. O Parlamento depende, para exercer sua função institucional, seja permitido a defesa de ideais através de representantes eleitos para tal.

Para isso, o moderno constitucionalismo criou um direito gigantesco ao representante: não pode ser preso por defender ideais, sejam elas quais forem. É difícil de aceitar para muitos, mas se algum louco quiser defender o nazismo ou o stalinismo, o lugar para fazer isso sem sofrer punição legal será via imunidade parlamentar. Para isso, o parlamentar precisará ter sido eleito e, por isso, representa parcela da população. Quando o parlamentar falar asneiras, vomitar impropérios, que se lhe critiquem duramente para que cada um dos seus eleitores jamais repita o erro de voto… esse é o limite possível e desejável de como enfrentar tais abusos no uso da palavra.

Temos assistido constantes ataques ao Poder Legislativo que, num primeiro momento, parecem coerentes e legítimos, porque os valores invocados para tal o são. A questão é que tais ataques são uma agressão direta à Democracia representativa e ao Estado Democrático de Direito, que depende para existir de um Parlamento Livre… e não há Parlamento Livre sem parlamentares livres.

Avançamos sobre um terreno perigoso, minado por argumentos valoroso. É óbvio que a maioria de nós não quer extremistas ou lunáticos como Parlamentares… mas a identificação da maioria ou do grupo dominante jamais poderá ser argumento para impedir que o Parlamento seja amordaçado por qualquer outro Poder ou Instituição. Na tribuna, o parlamentar é inviolável. E tem de ser assim, sob pena de, num outro momento, se estar impedindo uma fala justa porque afronta novamente os valores do governo ou da maioria.

Não é possível exista Democracia sem liberdade de expressão parlamentar na Tribuna. Isso vale para minorias, maiorias, coerentes e incoerentes. Esse é um pilar do Estado Democrático de Direito.

Estar certo e fazer o certo

Existem pessoas que acreditam que se alguém as ofende, podem puxar uma arma e atirar no ofensor.

Existem pessoas que acreditam que se há desigualdade social se pode invadir a propriedade alheia.

Existem pessoas que acreditam que bons argumentos justificam más atitudes.

O que estamos vendo quanto às invasões no centro dos três poderes, em Brasília, é mais um capítulo da longa enciclopédia de imaturidades brasileiras. E diga-se de plano: é um dos piores capítulos já escritos.

Essa enciclopédia tem muitos capítulos absurdos, de erros inaceitáveis, como naturalizar invasões de terras, como ocupar centros de pesquisas e depredá-los, como absolver um ex-presidente envolvidos nos dois maiores casos de corrupção da História e torná-lo novamente presidente, mesmo com todos os erros éticos, políticos e econômicos que cometeu. E, agora, seguirão os erros com abusos cada vez maiores do STF que está instalado no centro das causas de todos esses problemas, há décadas.

O brasileiro é acostumado à impunidade, ao argumento e à tolerância. E isso o faz um dos povos mais violentos do mundo, pois ninguém aguenta para sempre. Ninguém sobrevive sem ordem e sem justiça e, por isso, quando se sente pressionado pela injustiça e pelos abusos, age.

Uma sociedade começa pela união de esforços de sua gente e instalação de um Estado. Este deve em primeiríssimo lugar estabelecer justiça. Quando o Estado é o principal agente de injustiça, seja pela promoção da impunidade, seja pelo tratamento desigual entre os seus, será impossível a vida nessa sociedade.

Pois está na hora de fazermos o certo de uma vez por todas. Que parem de pedir intervenção militar os irresignados com a derrota eleitoral e lutem por mais democracia com as regras democráticas. Cresçam! Ou estarão dando cada vez mais corda para os abusos do já abusivo centro de todos os nossos problemas.

A Política

A palavra pólis, de origem grega para referir-se à cidade, dá origem à palavra política. Significa modernamente a ciência e o conjunto de valores e relações de engajamento para o governo do Estado.

Muitos de nós temos um olhar preconcebido sobre a política, porque identificamos na prática algo que não soa agradável. Costumo referir, por exemplo, Luis Carlos Prestes, líder comunista dos tempos de Getúlio Vargas, e seu principal opositor. Getúlio, um fascista (sem preconceitos, é a definição político-ideológica da época, onde comunistas e fascistas eram os grandes rivais) deportou Olga Benário, esposa de Prestes, para a Alemanha Nazista, onde morreu num campo de concentração por ser judia (e comunista). Pois não é que em 1947 ambos, Getúlio e Prestes, dividiram palanque eleitoral! Sempre me perguntei: isso é a boa política?

Não precisamos ir longe nem fazer grandes esforços para encontrarmos opositores ideológicos numa mesma aliança. Soviéticos, ingleses, franceses, norte-americanos, brasileiros, indianos, dentre muitos outros, lutaram contra o nazismo na última Grande Guerra. Cada um destes povos com uma religiosidade, uma cultura, uma visão de mundo e uma política governamental própria. O adversário exigia tamanho engajamento tornando as diferenças menores que o objetivo.

Pois o esforço conjunto dos países aliados contra o Eixo mostra que a política não é a associação de identidades e de valores ideológicos. Não é isso. A política é a soma de esforços para objetivos comuns. O debate ideológico faz sim parte da política, mas ele é costumeiramente deixado de lado quando há objetivos práticos mais urgentes e importantes. Essa a reflexão que impulsiona este texto.

Voltemos ao presente: Lula e Alckmin são resultado de uma aliança política construída com extremo esforço para combater o retorno expressivo dos valores conservadores no Brasil. Eles que foram rivais ideológicos – ou aparentemente foram – ao longo dos anos entre 1990 e 2010, parece que se identificaram como similares quando o oponente é a Direita. E é isso mesmo: quem sempre viu o PSDB como Direita errou feio.

PT é partido de extrema-esquerda, sempre aliado de outros como tal: PSOL e PCdoB. Defende “luta de classes”, “pautas de compensação histórica”, “Estado gigante” (por sinal, um valor fascista, segundo Mussolini), dentre outros valores importados do marxismo modernizado e adaptado para o Século XXI, onde até a defesa de homossexuais (odiados pelos comunistas de 100 anos atrás) e a tolerância religiosa (por conveniência) existem.

PSDB é partido de centro-esquerda, que expressa evidentemente os valores da social-democracia europeia e norte-americana (do Partido Democrata, no caso). Ao contrário do PT, defende certa liberdade de mercado e até privatizações, com a regulação do Estado.

Alckmin saiu do PSDB e está no PSB, mais à Esquerda. É coerente com a pauta proposta. Assim como é coerente, ainda que muitos não achem, que Simone Tebet e Ciro Gomes também apoiem a chapa petista. Não são estes liberais, tampouco são da Direita. Naturalmente defenderiam propostas mais próximas as suas do que as da Direita bolsonarista.

Cabe agora à Direita brasileira fazer política e, parece, é o que está aprendendo a fazer. Está falando de política em todas as esferas (como fez a Esquerda), está criando alianças com as forças sociais que lhe são compatíveis (militares, policiais, agricultores, empresários, como fez a Esquerda com professores, servidores, pequenos agricultores) e está se organizando ao redor de estratégias que são antigas para a Esquerda.

Resultado: agora isso é visto como absurdo pelas instituições acostumadas aos valores da Esquerda.

Segundo Resultado: agora o medo de que a sociedade seja dividida efetivamente entre dois lados irreconciliáveis é gigante.

Espero que a política vença as diferenças ideológicas e voltemos a compor alianças pacíficas em nome de objetivos maiores. Mas enquanto Ministros do STF, Imprensa, Militares, Policiais e a sociedade em geral estiverem claramente militando por um lado e não por objetivos, será a ideologia e não a política que estará vencendo.

Ah… a Democracia

Quando os atenienses iniciaram o uso da democracia, no Século. VI a.C., ela era direta, exercida pelos próprios cidadãos nas assembleias públicas. Durou menos de um século, quando a governança voltou a valer-se de modelos aristocráticos.

Por que será? Num sistema em que apenas os cidadãos (homens, atenienses, maiores de 18 anos) votavam, em que não havia quase diferenças de interesses que lhes causassem divergências, por que não conseguiram manter esse sistema que é justificado até hoje como o mais justo?

No caso ateniense, o próprio fato de que outras classes sociais não participavam do sistema era um problema. A diferença de interesses entre os membros daquela elite citadina, contudo, também era fonte de grandes disputas… sempre lembrando que é ali que surge o que chamamos hoje de filosofia e, portanto, existindo diferentes filosofias, havia diferentes perspectivas sobre a vida e a cidade.

E hoje? O que significa essa polarização mundial entre direita e esquerda? Significa realmente que há dois modelos rivais ou apenas que há duas posturas impositivas?

Vale lembrar que a polarização não é um episódio moderno. No mundo ocidental, tivemos polarizações entre gregos e romanos, entre cristãos e muçulmanos, entre católicos e protestantes, entre monarquistas e republicanos, entre capitalistas e socialistas… e por aí vai. O ser humano, ao menos esse que está autorizado a refletir sobre suas condições, tem muita dificuldade em compor ideais. Prefere o embate.

Quando enfrentamos o debate sobre a má representatividade política em nosso sistema, sempre me questiono se, depois de tantos e tantos anos, ainda não entendemos que o sistema reflete os valores da sociedade envolvida. Mesmo um sistema imperfeito e fraudulento estará refletindo valores de uma sociedade que não enfrenta fraudes, que se submete. Esse é a chave da questão!

A democracia brasileira é representativa e parece estar funcionando muito bem. A eleição de políticos anti-éticos, criminosos, parasitas sociais, demagogos nada mais é do que o reflexo governamental de valores que estão no campo social. Se dirá que as pessoas são ingênuas e por isso são cooptadas por este tipo de representante. Sim, é verdade… mas as pessoas são responsáveis por não serem ingênuas, por amadurecerem. Não há outro ser no mundo responsável por ti.

A democracia é o pior sistema, com exceção de todos os outros, disse Churchil, um monarquista conservador inglês. São os partidos que se identificam mais à esquerda os que utilizam-se mais do slogan democrático, contudo. Conservadores e progressistas, será que acampam em apenas dois grupos todas as demandas de todos os territórios e todos os tempos? Soa improvável.

Em cada canto do mundo, mudando o tempo e a cultura daquela gente, haverá pautas mais ou menos relevantes. A democracia representativa será aquela que conseguir atender estas demandas, independentemente do espectro ideológico. O que vemos portanto são divergências ideológicas que refletem no próprio sistema, na própria composição da estrutura que entendem necessária para atingir os fins que idealizam.

Fica a reflexão de que só existe esta polarização política porque a democracia chegou onde está. Há problemas no sistema. Há divergências de valores. Tudo isso é pauta dos polos. O que não pode ser pauta é o fim do debate democrático, a necessidade de imposição. Os que afrouxam o sistema, especialmente descumprindo relações éticas de convivência, são antidemocráticos e devem ser alijados.

A revolução e a guerra

Você aí consegue achar uma revolução que deu certo? Quero dizer, uma atingiu os objetivos propostos por seus próprios esforços? E uma guerra… você consegue achar uma que atingiu os objetivos que a justificavam?

O Império Russo era um dos maiores do mundo no final do Século XIX. O seu líder (o Czar, palavra de deriva do César romano) era o representante da família real Romanov (aqui de novo uma homenagem aos romanos). Naquela época a Europa efervescia de movimentos populares com objetivos democráticos e republicanos. Algumas ideologias se contrapunham entre si e quase todas contra a monarquia e a aristocracia tradicional.

Pois a Rússia promoveu uma revolução poderosa em 1917 e implantou pela primeira vez na História uma proposta ideológica de governo e sociedade artificial (nunca vivida nem construída aos poucos em substituição a outra) e absolutamente radical, que se mostrou violenta, autoritária, restritiva, discriminatória, sob o pretexto de que um projeto tão diferente de sociedade dependia de medidas extremas.

Todos sabemos o resultado, embora se insista em interpretar esta parte da História com um romantismo de identidade e afinidade.

O ponto de reflexão aqui proposto é: essa enorme revolução que depôs (e executou) a família real e outros milhões de cidadãos deu certo ou deu errado?

Podemos escolher outras revoluções importantes, como a de 1789 na França ou a de 73 a.C. em Roma (dos escravos) e avaliarmos: deu certo?

Raríssimas revoluções deram certo na História.

Vejam: a Revolução Francesa venceu as sua batalhas armadas, mas pouco tempo depois a França voltou a ter um Imperador e, daí, vê-se que mudar efetivamente não é algo que depende tanto da luta quanto da vontade da maioria.

É por isso que a democracia tem se estabelecido como um modelo viável de governança. As revoluções que deram certo, as poucas, foram para este lado na história recente.

Já com as guerras isso é bastante diferente. Bastante. A guerra é um conflito entre soberanias, ente estados ou entre lideranças políticas estabelecidas. As guerras tendem a ter motivos e objetivos menos complexos do ponto de vista ideológico, ainda que possam ser parte de um grande contexto. As guerras definem de forma efetiva a governança dos envolvidos, impactando em todos os sentidos.

O que estamos vivendo novamente na Europa (o continente “mais civilizado”) é, ao que parece, uma guerra sem propósito de imposição ideológica, como se pretende. É puramente interesse material e poder político, sem alterações sociais, sem debates efetivos de reconstrução governamental e cultural, com o objetivo puro e simples de expansão territorial e econômica.

Acreditávamos que a era dos imperialistas bélicos acabaria em breve, porque um novo tipo de imperialismo já existe. Contudo, o mundo não é (como se gostaria) um lugar plano e igualitário. As pessoas não são todas iguais. Não nos basta para termos paz que desejemos isso ou que nos afastemos das armas. Embora seja evidente este silogismo ele é desconsiderado em demasia no nosso tempo… e cá estamos.

Se a guerra proposta pela Rússia for vencida, a Europa não será a mesma, porque os russos (e os chineses) evidentemente não querem apenas parte da Ucrânia. Se os russos efetivamente vencerem a guerra, por muitos e muitos anos viveremos tentativas de revoluções para reconstruir o caminho democrático.

É por isso que a democracia é o único modelo viável de governança. Isso para quem a constrói adequadamente, institucionalmente, efetivamente. E essa construção, infelizmente, depende da capacidade bélica de defendê-la.

Eleição e Democracia

A democracia tem uma virtude: os governantes são a média dos seus cidadãos. A democracia tem um defeito: os governantes são a média dos seus cidadãos.

Em que pese a reclamação constante de quem pouco faz além de reclamar, a democracia é um regime de governo consolidado em nosso país. Há pouco tempo convivemos com essa característica político-social, mas retomamos o prumo democrático depois de entendermos que a democracia possível nos nossos tempos é a institucional, que se estabelece sob pilares de sustentação em instituições estatais e sociais. Já não ficamos bradando que o povo deve decidir diretamente por tudo, como se pensou até bem pouco tempo que seria o ideal.

Então, afinal: por que a democracia é tão boa se já entendemos que são as instituições que devem sustentá-la? Por que não se vota, por exemplo, para a ocupação institucional (para juízes, para professor, para diretor de banco estatal)? Ou por que não se tem governos técnicos, acessíveis por concurso público?

São perguntas cujas respostas ainda estão em construção. O fato é que a formação institucional deverá se tornar o grande objeto de poder e de conflitos sociais no futuro, com a repaginação das regras de acesso às mais variadas instituições, de forma a termos o poder cada vez mais difuso e segmentado.

Eleições, portanto, são instrumentos democráticos que deverão se tornar cada vez mais institucionalizados. As instituições é que deverão indicar seus representantes para as mais variadas tarefas estatais e sociais e, assim, dentro de cada segmento, o poder haverá de ser exercido por quem lidera cada parte deste quebra-cabeça.

Eis o que, penso, seja o futuro da democracia e das eleições.