Mundo Bipolar

A Guerra Fria (período que se estende entre o fim da Segunda Guerra e o fim da União Soviética) foi marcada pela existência de uma bipolaridade ideológica, com os EUA liderando o bloco capitalista e a URSS o bloco socialista. Ao final, em 1991, a URSS dissolveu-se, marcando o fim da bipolaridade com a “vitória” do capitalismo.

Não é difícil percebermos que a bipolaridade esteve presente na História antes desse período também. Ela foi marcada, por exemplo, no tempo do Império Romano, entre os imperialistas e os anti-imperialistas. Foi marcada mais tarde entre cristãos e muçulmanos, nas Cruzadas. Mais adiante entre Católicos e Reformistas. Depois entre Absolutistas e Iluministas. Depois ainda entre monarquistas e republicanos. Veja, há incontáveis exemplos.

Carl Gustav Jung ensinou que estamos submetidos ao inconsciente coletivo que, até que tenhamos consciência da sua presença, nos influencia sem nossa percepção. Parece que a humanidade sente-se confortável num mundo bipolar, onde lados claramente estabelecidos lhe dão conforto e segurança do que esperar.

No presente ainda temos bipolaridades explícitas. A mais palpável é entre direita e esquerda, uma bipolaridade que perdeu o sentido, seja pela inexatidão das suas pautas, seja pela instabilidade conceitual. Contudo, penso que a bipolaridade efetiva do nosso tempo se dá entre autocratas e democratas, ou seja, entre aqueles que preferem impor os valores e os sistemas que defendem e aqueles que preferem debatê-los, elaborá-los e, se for o caso, elegê-los.

Há um bloco autocrata claro no mundo, composto por China, Rússia, Coreia do Norte, ditaduras africanas e latino-americanas e seus simpatizantes. E há o bloco democrata, que transita em sistemas mais ou menos liberais, mais próximos ou mais distantes da social-democracia, mas ainda assim democrata, representado pela maioria dos países europeus, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Japão e alguns outros.

O Brasil ainda não escolheu o seu lado. Temos um regime autodenominado capitalista, onde o Estado regula (e quase monopoliza boa parte dos sistema produtivos), produzindo o que há de pior nas economias de mercado (que é a falta de concorrência por imposição estatal) e nas economias excessivamente reguladas (que é a dificuldade dos pequenos crescerem formalmente). O mais interessante nessa reflexão é que não faltam argumentos nobres para a defesa desse sistema híbrido e nefasto, mas tais argumentos só se sustentam quando dissociamos a realidade do ideal, acreditando que podemos construir um mundo justo a partir de injustiças e distinções.

Reflete aí: o Brasil tem se aproximado do mundo democrata ou autoritário?! Que te parece?!

A Suprema Corte

Fiat lux! O mundo é outro depois do Iluminismo. Veja que esse movimento surge numa Europa absolutista do Séc. XVIII e provoca uma drástica mudança nas estruturas políticas, sociais e culturais do mundo, sendo, por isso, o marco ideológico que divide a Idade Moderna da Contemporânea. Do Iluminismo nascem os direitos individuais que desembocam em diversas mudanças culturais – como a busca de igualdade (em todos os sentidos) e o fim do milenar regime escravista – e em mudanças políticas que buscam retirar o poder de uma elite estamental, dividindo este poder em diversas instituições e permitindo que todos tenham (em tese) acesso a este poder.

John Locke é tido como o Pai do Liberalismo e o grande influenciador de Montesquieu na ideia de divisão dos poderes. Claro, veja: o que se está enfrentando é um regime político em que autoridades tem muito poder e o rei tem poder absoluto. Por isso, a ideia é que se divida o poder para que ninguém possa utilizar-se do Estado para seus interesses ou contra os interesses dos seus desafetos. Nessa sistemática idealizada, a governança, a criação de leis que regulam a sociedade como um todo e o controle sobre o cumprimento destas regras devem necessariamente ser divididos em autoridades diferentes, que precisam respeitarem-se para manter o equilíbrio de poder. Assim haverá justiça e equidade.

Ao longo dos últimos dois séculos, especialmente em razão da influência do regime da common law, os tribunais são os moderadores deste complexo sistema, ou seja, quando há uma dissensão entre os poderes, será o Judiciário que dará a última palavra. Para isso, estabeleceu-se que os tribunais sejam formados por pessoas isentas, sem vínculos com os governantes, com os conflitantes, com as partes que divergem. O juiz natural (conceito jurídico que diz qual julgador deverá julgar determinado caso) precisa ser isento. É indispensável. Portanto, uma Suprema Corte será sempre a última instância de poder nesse sistema e seus membros os bastiões dessa complexa e importante estrutura.

Quando a Suprema Corte emite constante juízo de valor sobre todos os elementos culturais, jurídicos, factuais, políticos e sociais da sociedade a que está inserida, ela passa a participar ativamente da vida política desta sociedade, pois é um órgão de Estado intransponível. Veja: não é que a Suprema Corte foi processualmente provocada e julga determinada demanda! É que seus membros estão tão imersos no cotidiano governamental e político que influenciam as decisões extraprocessuais como um todo.

Essa é a realidade brasileira. Quando isso acontece, obviamente se está fragilizando uma relação institucional que precisa ser estável para produzir justiça. É impossível produzirmos justiça num ambiente onde o julgador é parcial e emite notas de valor sobre os debates políticos. Aprende-se isso nas aulas iniciais de Introdução ao Processo e Direito Constitucional.

Há muito tempo temos tido governantes que pessoalizam as estruturas estatais. No Brasil o Estado é um puxadinho dos grupos de poder. Essa é uma das razões pelas quais precisamos diminuir a influência dos governantes sobre as estruturas estatais, pois o brasileiro médio infelizmente usa o Estado para interesses próprios e, depois, demagogicamente, chama isso de interesse público.

O último nível, o mais abusivo, o mais repugnante dessa prática tem sido aparelhar órgãos de Estado com os amigos do rei e inimigos dos seus opositores. É uma privatização evidente das estruturas estatais, onde grupos de poder estão enraizados estruturalmente no Estado, de tal forma que não sobre espaço para outros ideais, outros setores, outros personagens.

Estamos jogando no lixo a evolução institucional dos últimos 300 anos. Nossos governantes, costumeiramente rasos em ética e compromisso público, definitivamente se apropriaram do Estado e extremaram as relações políticas, de tal forma que a única conduta que se espera é sempre a mais agressiva ao adversário.

A Suprema Corte deveria ser o palco onde isso é equilibrado, onde este debate político é menor e onde os valores estruturante da sociedade servem de sustentação e trabalham para que não haja rupturas. Deveria.

Temos hoje a pior composição histórica da Suprema Corte brasileira. São agente políticos imiscuídos em todos os ambientes de poder, de tal forma que exercem o poder de todas as formas diretas e indiretas, tornam-se justamente aquilo que os iluministas combatiam: Absolutistas.

Fiat lux!

Reacionário

Em política, costumamos chamar de reacionário aquele pensamento ou agente que reage às mudanças e/ou pretende restabelecer um estágio (e seus valores) anterior da sociedade. Comumente é utilizado por integrantes da esquerda ou de setores progressistas para classificar os conservadores.

Contudo, a verdade facilmente observada é que existem reacionários em qualquer espectro ideológico, à esquerda e à direita, mas nem tanto (ou bem menos) entre liberais. Essa reflexão ajuda à compreender que não existe apenas direita e esquerda na análise político-ideológica, veja:

É característica conceitual do Liberalismo a aceitação às liberdades individuais, o que reflete necessariamente na adaptação desta corrente às mudanças sociais que forem se estabelecendo nos mais variados grupos da sociedade. De forma exemplificativa, o liberal pode ser contra o uso recreativo da maconha, mas ser a favor de que o Estado não proíba o uso, pois entende que cada indivíduo deve ser o senhor da sua autonomia.

Setores político-ideológicos mais à esquerda costumam reagir contra mudanças tecnológicas que coloquem em risco a oferta dos atuais empregos. Também se insurgem contra mudanças legais que demandem mais ônus a trabalhadores. Ainda reagem contra a concessão de benefícios tributários a segmentos da economia que não tenham identidade com suas pautas.

Setores mais à direita dispensam maior reação a pautas de costumes, impondo-se contra o aborto e liberação de drogas recreativas. Reagem também sempre que o Estado diminui direitos da classe produtiva, especialmente as estabelecidas historicamente, como agricultores, industriais, profissionais liberais.

Quando a Revolução Industrial atingiu seu segundo ciclo e os veículos a combustão passaram a se popularizar, imaginou-se que haveria um impacto social gigantesco sobre o segmento do transporte a cavalo, afinal se tratava de um modelo existente há milhares de anos. O que a História mostrou é que, passado o momento de mudança e adaptação, novas profissões surgiram e impactaram em adequações pessoais, sociais, educacionais e de outras ordens.

É necessário reagirmos sempre que algo nos faz mal. E é necessário aprendermos, como aprendemos tantas outras coisas, a olhar para o lado e perceber se nossa reação é proporcional à realidade, ao outro, ao mundo. Foi assim que conseguimos deixar a barbárie de outros tempos, o escravismo, o infanticídio, o canibalismo, o sacrifício religioso humano e tantas outras condutas que, ora ultrapassadas, hoje nos soam horrendas e deixam elementar a nossa evolução. Para aqueles que acham que foi o Estado que melhorou a sociedade, saibam que sempre houve Estado de uma forma ou de outra, em quase todas as sociedades conhecidas. Para aqueles que acham que foram os costumes que salvaram a sociedade, saibam que ainda existem costumes. Tudo está sempre no caminho de tornar-se melhor do que era.

O pavio está aceso

É reconhecido historicamente que brasileiros não são democratas. Só no Século XX tivemos décadas de afronto aos valores democráticos, a começar pela República Velha que era apenas nominalmente democrática. Depois dela, golpe de Getúlio (duas vezes), golpe militar, eleições indiretas e por aí vai. Se contarmos o tempo em que vivemos com algo próximo à democracia não chegamos a 30 anos.

Prestando atenção, vemos que não é só no aspecto eleitoral que não somos democratas. É também no aspecto pessoal. É muito comum vermos o brasileiro médio abusar da sua condição, seja ele de que classe social, etnia, instrução for. Exemplo: o motorista de coletivos, se não gostar de determinado passageiro, finge que não o vê. Outro exemplo: o atendente de balcão que pode escolher, escolhe atender quem mais lhe beneficia. São tantos os exemplos que é desnecessário reproduzi-los. O que é necessário é percebermos que até a análise sobre isso é antidemocrática, pois ela costuma falar em “classes sociais”, em “cor de pele”, em “gênero” e se vê que, de forma geral, isso não influencia a postura antidemocrática e abusiva por aqui. Quase todos abusam ou são abusados.

É aqui que queria chegar.

Em 2016, Dilma Roussef consultou os ministros militares sobre a possibilidade de resistirem ao seu impedimento. Foi informada de que isso não seria possível. Foi impedida de continuar na Presidência e ganhou o beneplácito de manter os seus poderes políticos. É uma demonstração inequívoca, por parte dela, de desrespeito institucional. Os governos petistas foram marcados por invasões de terras financiadas com dinheiro público e costumeiramente toleradas. Outra aversão à institucionalidade democrática.

Em 2022 Bolsonaro fez o mesmo. Bolsonaristas pediam sem constrangimento intervenção militar. Novamente as Forças Armadas se manifestaram contrárias. Vejam que as posturas são similares, embora praticadas por polos rivais (como ocorria há 100 anos entre fascistas e comunistas).

Por que agora as instituições estão reprimindo apenas os bolsonaristas (que merecem julgamento, mas não menos que os petistas)? Porque, como dissemos no segundo parágrafo, o brasileiro gosta de abusar e o faz sempre que pode. Não somos democratas. Não respeitamos a vontade da maioria. Não respeitamos a representatividade. E há discursos prontos para isso, inclusive para desrespeitar a vontade da maioria sob defesa de uma “democracia” que não é democrática, normalmente elitista e estadista, que trata as pessoas que trabalham no país como parasitas, ao invés de assim tratar os sanguessugas que pouco fazem além de viver às custas do dinheiro público em seus cargos e privilégios, com demagogia e hipocrisia explícitas.

O que mais me preocupa, neste momento, é que por longas décadas conseguimos diminuir a violência política e institucional. Tivemos por nossa História incontáveis revoluções e movimentos armados. Foram dezenas. Nos últimos 60 anos isso tem diminuído, mas parece que o Estado brasileiro (sua cúpula) não entendeu que a maioria da população continua sendo enfrentada por abusos estatais…

Isso é o que mais preocupa. A democracia é relativamente simples. É a representação popular através do voto e o respeito da decisão da maioria. Quando uma minoria se aloja no poder com artimanhas institucionais e desrespeita os valores da maioria, acende-se um pavio.

O pavio está aceso.

Educar

Os europeus renascentistas chamaram a Idade Média de Idade das Trevas porque entenderam que, ao longo de quase mil anos, deixaram de valorizar e aprimorar o grande avanço cultural que o pensamento greco-romano representou. Criticavam abertamente a Igreja Católica do período, entendendo que ela desvirtuara o propósito crístico e se tornara mero instrumento mundano de dominação que, durante sua expansão, entregou a cultura europeia ao retrocesso. É por isso que chamaram o período posterior de Renascimento (da cultura) e, o que veio depois, de Iluminismo – o iluminador.

É nesse tempo da Histórica eurocêntrica que a educação desponta como necessária. Ex ducare em latim significa “conduzir de dentro para fora”. Reconheciam que o saber decorre de um aperfeiçoamento interior que vai se exteriorizando. Vejam que, na Grécia Antiga, as academias eram escolas do corpo e da alma… e foram deixadas de lado durante o período medieval.

Hoje a educação é um valor social. Não é necessário que se interesse por educar-se para ingressar no sistema educacional básico. É obrigatório.

Por muito tempo a educação foi restrita àqueles que mostravam interesse e condições para tal. Muitos sistemas educacionais da antiguidade só aceitavam candidatos que demonstrassem dispor de inteligência e principalmente dos valores pessoais que a educação exigia. Sabia-se (ou entendia-se) que educar uma pessoa era armá-la de um poder que não poderia ser entregue a qualquer um. Essa educação era desafiadora. Libertadora. Engrandecedora.

A educação como produto social participa ativamente da padronização cultural que se pretende, justamente porque segue no sentido contrário. Apresenta modelos rígidos de conhecimento, numa tentativa de dispersão do saber. Padroniza. Controla. Neste sistema moderno, deixava-se para a graduação o desafio de libertar e engrandecer o educando… mas isso também está sendo reduzido. Os cursos superiores têm se tornado apenas mais um nível deste processo de padronização humana.

Parece bastante claro que a riqueza do mundo não é material, mas educacional. Já vivemos tempo suficiente para termos aprendido que recursos naturais, metais preciosos, dinheiro, tecnologia, livros e qualquer outro recurso material são acessórios no processo de enriquecimento. É o poder educativo de um povo que o eleva.

Que saibamos e queiramos ex ducare, porque não estamos promovendo isso.

O Hino Rio-grandense é racista?!

Tem-se debatido que o Hino gaúcho possui um trecho racista: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Trata-se de um revisionismo que, com o máximo respeito, se afasta da verdade histórica e dos valores que representam os hinos e os símbolos de um povo.

Em primeiro lugar, esta frase é claramente positivista. Nas aulas de Sociologia aprendemos que o positivismo foi ideologia muito influente em meados do Século XIX, a ponto de seus principais defensores serem também os principais nomes da Sociologia do período, sendo Auguste Comte chamado de “pai da sociologia”. Os positivistas eram abolicionistas. Para eles, as virtudes libertam os homens, enquanto os seus vícios (a preguiça, a maldade, a desordem, a desonra, etc.) os escravizam. Vejam que a frase não se relaciona com o processo escravagista do período mas, de certa forma, o enfrenta, ao propor que todos devam buscar serem virtuosos para que não sejam escravos de si próprios. Associando o fato de serem abolicionistas com a possível intenção das palavras utilizadas, podemos inclusive inferir (e aqui também é um revisionismo) que os autores do hino estão dizendo que até quem se via livre (do escravagismo do período) pode ser escravo se não for virtuoso.

Não bastasse o evidente ideário positivista nas palavras, parte do hino que referia “entre nós reviva Atenas para assombro dos tiranos, sejamos gregos na glória e na virtude romanos” foi retirada em 1966, segundo presumimos porque o regime ditatorial militar não concordava com a menção à tirania. Com esse trecho retirado vê-se claramente a referência às virtudes que os positivistas defendiam e tinham como referência.

Há outro elemento tão importante quanto este invocado até aqui: os farroupilhas teriam pedido ao famoso (na época) Maestro Negro Joaquim José de Mendanha, que estava preso em 1838 por ser inimigo, lotado no Batalhão de Caçadores Imperial, que criasse a melodia do Hino Nacional Farroupilha.

Portanto, ao revisarmos a História imputando aos Farroupilhas a pecha que se propõe se está desonrando quem defendia justamente o ideal inverso. Não é de se estranhar, pois há algum tempo tenta-se aplacar a ideia de que os Farrapos traíram seus irmãos de combate negros na famosa Batalha dos Porongos. Usam-se documentos apócrifos para dizer que houve uma trama contra os Lanceiros Negros, massacrados (junto com soldados brancos) numa emboscada. Diz-se inclusive que os soldados negros não teriam o ideal farroupilha, mas lutavam apenas porque pretendiam a alforria. Vê-se claramente que são revisões, que podem ou não guardar algumas verdades, mas que certamente tratam de forma generalista (e simplista) e com olhar particular, algo muito mais complexo do que se pretende. Parece evidente que no contexto social do Séc. XIX, durante a Guerra dos Farrapos contra o Império, deveríamos ter toda sorte de ideais motivando individualmente os envolvidos. O que é inequívoco é: os ideais abolicionistas (propostos por correntes iluministas, positivistas, liberais, dentre tantas outras) faziam sim parte do ideal farrapo, tanto que a proposta de liberdade aos negros combatentes (imitada, por exemplo, na Guerra do Paraguai) existiu.

Vida fácil, mas complexa

Há 100 anos a humanidade enfrentava a ruína dos regimes monárquicos tradicionais e iniciava a implantação das repúblicas democráticas ou das monarquias parlamentares democráticas, especialmente no Ocidente. Estas mudanças produziram debates ideológicos que persistem, criando regimes mais autoritários, como o fascismo e o comunismo, em oposição ao regime liberal que afrontava a monarquia. É um bom tema para outra reflexão percebermos que as raízes do autoritarismo monárquico (não que todo monarquista assim fosse, mas o regime assim era) persistem nos regimes autocráticos que odeiam o liberalismo por questionar o mau uso das liberdades individuais.

Faz menos de um século que os regimes colonialistas passaram a ser questionados, que se criou um órgão internacional de meação entre as nações para que se evitassem as guerras, que os direitos do trabalhador passaram a ser regulados, que o meio ambiente entrou no debate social e filosófico, que as mulheres ascenderam ao mesmo nível social dos homens, que a educação escolar popularizou-se, que o ideal de igualdade étnica passou a ser debatido, que as religiões buscam deixar de ser causa de conflitos constantes. Somos seres sociais, como bem ensinou Aristóteles há 2400 anos, e estamos aprendendo muito mais nos últimos três séculos sobre isso.

A vida hoje é muito mais fácil para nós do que foi para nossos avós. Conseguir escola, ser atendido no posto de saúde, coletar uma informação qualquer, chamar autoridades para atender uma demanda, reclamar de uma má prestação estatal ou privada, encontrar trabalho, proteger-se da violência, comprar comida… são tantas as facilidades a mais que não precisamos de muito esforço para admitir que evoluímos estruturalmente.

Hoje a vida é mais fácil e mais complexa. Antes era mais difícil e mais simples. O que se pretendia na vida era mais uniformizado, idealizado pela coletividade. Os dilemas eram menores. Todos deviam casar, por exemplo. Não havia profundas reflexões sobre isso. Contudo, os casamentos difíceis deveriam ser suportados por toda vida e assim eram. Veja que simples decisão e que difícil condição.

As facilidades do nosso tempo criaram muitas ilusões. Os seres humanos não são melhores porque a vida em sociedade ficou mais fácil. Não percebem que ainda precisamos de objetivos, de esforço de superação, de consciência das condições existenciais de causa e efeito. Deixamos de perceber que uma família feliz não é acidente, mas fruto de muito esforço dos que a conduzem. Deixamos de reconhecer que não há acasos capazes de tornar uma pessoa melhor do que ela se esforça em ser… e assim é também com as sociedades.

A vida mais fácil do nosso tempo precisa conscientizar-nos de que existem demandas impossíveis, como a paz absoluta, a igualdade absoluta, a distribuição igualitária de riquezas, a felicidade natural. Jamais haverá isso nesse planeta. Nem mesmo nos regimes mais autoritários se conseguiria impor tais resultados.

Somos diferentes e vivemos a era do respeito às diferenças. Precisamos nos conscientizar de que o mundo possível é este em que cada diferença possa ser vivida. Neste mundo possível, os grupos de diferentes valores precisam ser separados se for impossível a sua convivência, mas integrados sempre que amadurecidos para tal. Sempre haverá os mais e os menos maduros, os mais e os menos violentos, os mais e os menos humanos. Sempre será necessário punir os que desrespeitam os demais.

Quando os mais maduros abdicam da liderança e da governança, serão os mais despreparados que governarão. Não há mais espaço, no nosso tempo, para que as melhores pessoas se abstenham de fazer a sua parte.


Por que existe a lei?

A primeira lei escrita conhecida é o Código do imperador babilônico Hamurabi, datando de aproximadamente 1700 a.C. Este conjunto de regras ficou conhecido como Lei do Talião, porque foi literalmente talhado numa grande para que todos soubessem o que era permitido e o que não era – isso numa época em que pouquíssimos sabiam ler.

Ao longo do tempo as sociedades foram aprimorando-se e aprimorando o uso das normas jurídicas. A principal função da lei passou a ser, especialmente nas sociedades ocidentais dos últimos 300 anos, regular a relação do Estado com os cidadãos, estabelecendo limites ao poder estatal que sempre foi absoluto. Vejam: o aprimoramento social e civilizatório é uma busca de valorização do indivíduo, conferindo-lhe cada vez mais autonomia e, quando essa liberdade é má utilizada, responsabilizando-o.

Sempre existiram os mais autoritários que entendem que cabe ao Estado tudo controlar e regular. Creio seja um resquício inconsciente daquilo que a sociedade historicamente sempre foi, controlada por uma autoridade tida como melhor que o povo (divina para uns) e por isso legítima para tudo dizer e determinar.

Pois os últimos 300 anos foram marcados pela valorização do indivíduo, seja de que classe social for, seja de que origem cultural ou religiosa for. Mais recentemente esta valorização alcançou debates de gênero, de etnia e até de condição de saúde.

A lei é, portanto, um instrumento de garantia de direitos mínimos para o cidadão, o indivíduo. Por ela se dá a cada um a consciência do que pode ou não realizar. Sem ela voltamos ao poder absoluto do governante, que é justamente o oposto da razão existencial das leis.

O Brasil é o país com o maior número de normas jurídicas do mundo e há uma razão para isso: quanto mais complexo o ordenamento jurídico, mais o cidadão depende da autoridade do Estado para dizer o seu direito. Quando é simples a compreensão do certo e do errado, simples serão os debates sobre quem está de acordo com a lei… contudo, naturalizamos a necessidade de o Estado tudo nos dizer, tudo nos orientar, tudo regrar.

Então, no fundo, nosso regime ainda é uma simulação de liberdade, ainda nos condicionamos à autoridade, trocando, de tempo em tempo, quem nos governará.

Já no Séc. XIX refletiu o historiador francês Alexis de Tocqueville: “o cidadão pensa-se livre por ter livremente escolhido o tutor (governante). Mas não é livre quem é tutelado”.

Não é que as pessoas não precisem de normas e comandos. Não é essa a proposta de sociedade moderna, democrática e republicana. É que as pessoas devem se tornar autônomas o suficiente para que ninguém lhes precise dizer como devem agir. A sociedade moderna ideal é aquela em que, cada um sabendo o que pode e não pode realizar, vive livre dentro deste espaço existencial, sem que precise em momento algum pedir, muito menos implorar ao Estado ou a qualquer outro ente para que exista plenamente.

Como vamos nos tornar autônomos, livres enfim, se tudo nos é determinado e dificilmente compreendido? Como podemos saber o que podemos ou não realizar se os entendimentos mudam a todo instante, se as incontáveis normais são colidentes, se as autoridades têm sempre mais direitos que o conjunto de valores que se pretende implantar?

O Brasil é um país violento, elitista e abusivo. E nunca no Século XXI estivemos tão próximos do Séc. XIX como agora, ainda que o discurso corrente seja alucinadamente de liberdade e democracia. A lei por aqui continua servindo de instrumento reacionário, impedindo que nos tornemos o que sempre sonhamos e temos condição de ser, nos limitando como indivíduos e como sociedade, padronizando nossa gente para que caiba no interesse dos nossos governantes.

Radicais e Fanáticos

Usamos indevidamente a palavra radical em nosso tempo. Pelo léxico, radical é aquilo que diz respeito à origem, à raiz, ao âmago de um assunto. Quando estudamos radicalmente algo isso deveria significar que estamos buscando os elementos mais substanciais e formadores, a origem daquele assunto. Vejamos que Jesus, por exemplo, buscou uma interpretação radical mas inovadora da verdade (como chamava as lições religiosas no teu tempo).

Fanatismo é algo absolutamente diferente. Tem a ver com a visão extremada, a ideia quase patológica e com doses de intolerância às ideias diferentes. No sentido etimológico, podemos ser radicais e não termos fanatismo algum ao buscarmos uma ideia com seu mais puro elemento formador, sem que sejamos intolerantes nessa busca.

Radicais buscam a verdade sobre algo. Fanáticos buscam impor sua verdade. São coisas (radicalmente) divergentes.

Esse embaralhar de conceitos produz outros problemas. É comum, porque buscamos uma ideia radical, acreditarmos que ela também precisa ser fanática. Exemplo: alguns radicais ideológicos (que buscam elementos conceituais puros e originários de determinada ideologia) acreditam que todo direitista é racista. Vejam: porque acreditam num conceito radical sobre o que é ser de direita, acreditam genericamente que só haverá racismo vinculado a isso e, ao mesmo tempo, acreditam que todo racismo decorre disso. É tipicamente uma visão fanática, porque distorce a realidade para encaixar sua abordagem extremada. Outro exemplo, no viés ideológico oposto, é determinados radicais (no sentido aqui proposto) acreditarem que todo esquerdista é avesso à ordem e à disciplina porque determinadas correntes de esquerda pregam a subversão à ordem vigente. Novamente uma visão fanática, generalista sobre determinada forma de pensar, em que se generaliza uma abordagem sobre o tema.

A reflexão proposta pode ser assim resumida: é muito comum o fanatismo distorcer uma ideia. E é muito comum a busca radical por um ideal produzir o fanatismo. Não podemos naturalizar que conceitos, ideias, objetivos existenciais sirvam de pretexto para nos antagonizarmos. Isso cria um terreno fértil ao fanatismo e não há benefício algum no fanatismo.

Podemos ser radicais, podemos buscar ideais conceitualmente puros. Nos tornarmos fanáticos nessa busca jamais.

O Parlamento

Na Inglaterra do Século XIII, a nobreza e as camadas sociais que viriam a ser chamadas de burguesia quiseram participar do governo e, assim, diminuir o poder absoluto que estava na mão do monarca. Eduardo I, convencido de que nobres e clérigos deveriam ser ouvidos sobre certas demandas, decidiu criar um órgão de elaboração das leis. Surge assim o primeiro Parlamento, um órgão da elite, onde o poder central do monarca poderia ser enfrentado e diminuído.

Cinco séculos depois o resto da Europa Ocidental começava a enfraquecer o Absolutismo, provocados pelos ideais Iluministas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A França é a primeira a dar ao Parlamento um poder de Estado superior ao monarca. EUA, pouco antes, cria um Parlamento de representantes do povo eleitos por sufrágio. É o início de um longo processo que, ainda em nossos dias, está em implantação e elaboração e que não toca a todas as sociedades de forma homogênea.

Lá na breve Democracia Clássica dos atenienses as assembleias eram diretas e todos se manifestavam em praça. Podemos crer que já naquela época eram conduzidas as assembleias pelas lideranças para os fins que pretendiam e que as ideias mais radicais ou inovadoras eram reprimidas. É absolutamente provável que fosse assim. Contudo, era o próprio cidadão quem lá estava.

Na Democracia moderna isso é impossível, por isso o Parlamento se tornou o órgão de representação mais expressivo da população e de suas ideias. O Parlamento depende, para exercer sua função institucional, seja permitido a defesa de ideais através de representantes eleitos para tal.

Para isso, o moderno constitucionalismo criou um direito gigantesco ao representante: não pode ser preso por defender ideais, sejam elas quais forem. É difícil de aceitar para muitos, mas se algum louco quiser defender o nazismo ou o stalinismo, o lugar para fazer isso sem sofrer punição legal será via imunidade parlamentar. Para isso, o parlamentar precisará ter sido eleito e, por isso, representa parcela da população. Quando o parlamentar falar asneiras, vomitar impropérios, que se lhe critiquem duramente para que cada um dos seus eleitores jamais repita o erro de voto… esse é o limite possível e desejável de como enfrentar tais abusos no uso da palavra.

Temos assistido constantes ataques ao Poder Legislativo que, num primeiro momento, parecem coerentes e legítimos, porque os valores invocados para tal o são. A questão é que tais ataques são uma agressão direta à Democracia representativa e ao Estado Democrático de Direito, que depende para existir de um Parlamento Livre… e não há Parlamento Livre sem parlamentares livres.

Avançamos sobre um terreno perigoso, minado por argumentos valoroso. É óbvio que a maioria de nós não quer extremistas ou lunáticos como Parlamentares… mas a identificação da maioria ou do grupo dominante jamais poderá ser argumento para impedir que o Parlamento seja amordaçado por qualquer outro Poder ou Instituição. Na tribuna, o parlamentar é inviolável. E tem de ser assim, sob pena de, num outro momento, se estar impedindo uma fala justa porque afronta novamente os valores do governo ou da maioria.

Não é possível exista Democracia sem liberdade de expressão parlamentar na Tribuna. Isso vale para minorias, maiorias, coerentes e incoerentes. Esse é um pilar do Estado Democrático de Direito.