Preconceito?!

Quando me mudei para a cidade em que cresci, aos cinco anos de idade, deixei de ser cuidado pela minha avó materna e passei a ficar diariamente com empregadas domésticas, enquanto meus pais trabalhavam. Quando tinha cerca de sete anos de idade fui autorizado a sair para brincar sozinho na vila. Era assim que chamávamos onde morávamos: a vila.

Meu pai cresceu na vila. Meu avô ajudou a construí-la e torná-la habitável; ele foi um mestre-de-obras notável… outra hora vou escrever sobre isso. Meus tios e primos moravam todos na vila. Minha mãe viveu lá por um tempo, na juventude. E eu simplesmente adorava estar lá!

A vila sempre teve um preço emocional muito grande para mim. Morávamos numa casa alugada de madeira enquanto nossa nova casa estava sendo construída… infelizmente em outra vila. Mas eu nem pensava nisso com sete anos. Queria simplesmente aproveitar o tempo que tinha livre para jogar bola, andar de bicicleta, brincar com meus primos e amigos.

Depois de muitos anos percebi que passei por “dificuldades” na minha infância que não fazem parte do contexto de enfrentamentos e reflexões comuns. Seria preconceito reverso? Uma espécie de classefobia?

Minha mãe é médica. E eu morava numa vila. Isso resume o que quero dizer. Em todos os lugares em que ia pela primeira vez (no campo de futebol, na casa de um novo amigo, em uma nova rua brincar de pega-pega) eu era apresentado como o filho da médica. E o próximo passo era sempre provar que eu poderia estar ali, que não era um filhinho-de-papai ou um riquinho (como se muitos lá não fossem bem mais metidos e filhinhos-de-papai!). Muitas vezes fui o único a não ser escolhido para jogar bola por isso. Algumas vezes me bateram por isso. Muitas vezes eu fiquei sozinho por isso.

Isso me entristecia? Claro. Mas não existia essa coisa de hoje de ficarmos perdendo tempo com nosso sofrimento. Falar sobre isso com qualquer outras pessoa? Jamais. Naquela época íamos adiante. Simplesmente assim.

Aprendi a ser mais forte (ou talvez já fosse!) e isso fez toda a diferença na minha vida. Não forte fisicamente, óbvio. Aprendi que se era preciso jogar bola melhor, que fosse. Que se era preciso correr mais rápido, que fosse. Tocar um instrumento, ser competitivo em jogos de tabuleiro, ajudar os outros com tarefas escolares, limpar um terreno baldio para torná-lo um campo de futebol… simplesmente eu ia me tornando melhor do que eu era ontem, mais forte e mais determinado. Alguns jamais se tornaram meus amigos, mas a maioria sim. E isso era, naquela época, o meu trofeu.

O mundo e a vida são ambientes difíceis. Sou dos que acredita que isso tem um propósito e que suavizar este ambiente artificialmente é uma hipocrisia, uma demagogia, uma ideologia. O mundo pode sim ser mais feliz com pessoas melhores, mas isso não decorrerá de uma pauta, senão de uma busca pessoal de cada um. Vivi no mesmo ambiente que muitos outros; a maioria de nós se tornou um adulto responsável, mas nem todos. O esforço pessoal é parte importante daquilo que nos tornamos.

Fico imaginando se eu estivesse submetido desde aquela época a um discurso vitimizado e de enfrentamento. Como seria? Eu hoje teria medo e desrespeitaria pessoas mais simples? Eu debocharia de quem era menos inteligente para revidar as agressões que sofri? Talvez eu acreditasse que o mundo é dividido entre pessoas boas (eu e os meus) e más (meus agressores)?

O preconceito existe. Sempre existiu. E para aqueles que vivem no mundo real em que pautas são menos importantes do que a vida em si, o preconceito sempre existirá e sempre ensinará aos que o enfrentam com coragem e bondade. Estes são os que realmente acabarão com ele… ao menos em relação a si.

Abusos

Vou contar mais uma história pessoal: na minha quinta série, quando tinha dez anos, fui estudar num colégio de classe média que ficava em Porto Alegre (eu morava em Viamão). Neste colégio eu sofri bullying por quase um ano. Eu tinha um colega que devia ter uns dezesseis anos, dizia-se que estava pela terceira vez repetindo. Era o filho do dono do bar, um alemão muito maior que eu, a quem aprendi a temer até doer de medo.

Esse colega foi, digamos, o vetor dos abusos, porque depois que ele começou e eu me amedrontei, muitos outros colegas passaram a fazer algo contra mim.

Não lembro exatamente quando começou, mas provavelmente foi quando o alemão baixou meu calção em plena educação física e fiquei nu em frente a todos os colegas. Pra ajudar, fui reprimido pelo professor, que achou que eu estava de brincadeira com os outros guris.

Teve uma ocasião em que fui colocado no grupo de trabalho de duas colegas, uma negra e uma a quem já conhecia, de Viamão. Combinamos de nos encontrarmos na casa da minha colega negra. Ela me deu o endereço e, na tarde combinada, peguei o ônibus e fui ao local. Procurei, procurei… perguntei… nada. No dia seguinte eu, constrangido por me sentir burro, fui dizer pra elas que não tinha conseguido encontrar a casa e pedir desculpas por não participar do trabalho (não existia celular) e elas começaram a rir de mim, com outros colegas. Haviam me dado o endereço errado para zoar comigo.

Teve outras situações que, confesso, nem lembro direito mais. Eu odiava tanto ir pra escola que começaram a surgir em mim diversas erupções cutâneas, como furúnculos e tersóis. Até que fiz dois amigos e as coisas começaram a melhorar, isso já próximo ao final do ano.

Nunca soube o porquê disso. Desconfiei na época que era porque eu não tinha as roupas que eles tinham, mas não acho hoje que fosse exatamente isso. Hoje acredito que eu tinha uma postura muito introspectiva e isolada, que naturalmente atraía os abusadores e os que gostam de se impor.

Minha mãe teve uma ideia de gênio. Ela não sabia o que eu passava, eu não dizia. Ela intuiu que meu problema era insegurança e me incentivou a voltar às aulas de karatê duas vezes na semana. O karatê meu deu autoconfiança e me ajudou a controlar a minha agressividade. Fiz karatê até os vinte e quatro anos.

Por que trago isso? Porque há uma ideia  (em alguns) de que guris brancos de classe média estão isentos de abusos e de problemas. Há uma ideia de que tudo é problema social e uma inversão de quem são as verdadeiras vítimas. Todos somos potenciais vítimas de abusadores e, se não nos controlarmos, todos somos potenciais abusadores.

Ninguém precisa ser vítima de nada. As pessoas precisam acreditar que podem ser mais fortes do que são, porque todos podem. Todos temos de aprender que contra abusadores, criminosos, agressores o remédio é, antes de mais nada, coragem e coragem.

Uma pessoa sozinha tem certa quantidade de coragem, mas duas pessoas juntas não vão apenas dobrá-la… quiçá quadruplicá-la. Se aprendêssemos a nos unir contra os patifes que nos cercam e cada vez mais se impõe, nós certamente os suplantaríamos. Mas estamos envoltos em teses e mais teses.

Enquanto isso os abusados que aguentem.