O exercício do possível

Em algumas pessoas o resultado do sofrimento é a revolta. Encontram meios de extravasar tudo de ruim que sentem por meio da insurgência, numa espécie de projeção em algo ou alguém daquilo que acreditam poderá aliviá-las, um pouco que seja.

Em algumas pessoas o resultado do sofrimento é a mudança. Ainda que inconscientemente, entendem-se responsáveis pelos acontecimentos da sua vida e, portanto, veem-se como agentes da mudança que evitará a repetição do que lhes aflige.

Em algumas pessoas o resultado do sofrimento é a incapacitação. Sentem-se fracas, incapazes de enfrentá-lo. Afundam naquele momento, numa inércia intransponível.

Na vida aparentemente perfeita (aos olhos dos outros) há muito esforço não contemplado ou ilusão. Tudo que parece fácil é superficial. Tudo que soa descabido teve seus motivos. Tudo que está funcionando foi devidamente construído, seja um relacionamento, seja um equipamento.

Pela criação tem-se ideia do criador. Pelo resultado tem-se ideia do esforço. Pela estabilidade tem-se noção da estrutura. Pela distância tem-se noção do tempo.

Não há vida sem dor, nem há dor sem vida. O pêndulo da existência, que busca a estabilidade, vagueia entre extremos e depende do antagonismo para movimentar-se. Há de compreendermos, cedo ou tarde, que viver é lidar com isso tudo e que a revolta que assim seja é, por si, o problema, longe de ser a solução.

A vida é o exercício do possível. Toda teoria é testada. Toda energia é empregada. Toda atitude produz resultados. Toda omissão será cobrada. Nunca desista de ser melhor do que ontem porque é isso que movimenta a existência e felicita o existente.

Não desista!

Se cada vez mais há divergências e imposições de pensamentos uniformes e encaixotados, não desista do debate.

Se cada vez mais há determinações sobre no que acreditar ou no que não acreditar, não desista da sua fé.

Se os vizinhos não se cumprimentam mais, tampouco dividem sua atenção e cordialidade, não desista da gentileza.

Se as academias desistiram do debate e do contraditório para impor a régua minúscula de uma filosofia enlatada, não desista da reflexão.

Se a família transformou-se em terreno bélico de emoções, não desista de cuidar e de cuidar-se.

Se a vida é dura – e ela é – não desista de vivê-la.

Há mais coisas que valem a pena ao nosso redor do que a desistência contempla.

Bird Box

Se você não viu ainda Bird Box (na Netflix) para por aqui.

O suicídio é um assunto difícil. Ele é resultado de fatos distintos, de somatórios emocionais, que tendem a produzir a mesma coisa: depressão.

Depressão é o mal do século. É uma epidemia. Contagiosa, poderosa, reincidente, que ataca os fortes e os fracos.

Bird Box simboliza de forma interessante a ideia de que, para parar de sofrer, você precisa parar de olhar as coisas que trazem sofrimento. Parar de olhar, mas não parar de enfrentar. E precisa aprender a sentir, sem olhar, sem focar no que já sabe que lhe trará a dor. Precisa, portanto, reaprender a viver com outros sentidos, com outras referências.

A casa dos meus pais foi construída sobre um terreno tido como amaldiçoado, porque nele um senhor se enforcou há umas cinco décadas. Penso que naqueles tempos se tinha o suicídio como uma forma de covardia para enfrentar os problemas da vida. Talvez até seja…

Mas afinal quem não sente-se covarde vez ou outra?! Quem não pensa em desistir quando o sofrimento é gigantesco?!

A vida, quanto mais passa, mais traz sofrimentos. E, felizmente, mais ensina a vencê-los. Nem sempre conseguimos arrecadar os ingredientes que nos fortalecem porque eles não são palpáveis. Não seriam detectados por São Tomé. “Eis o meu segredo”, disse o Pequeno Príncipe: “só se vê bem com o coração. O essencial é imperceptível aos olhos”.

A felicidade – ou ao menos a vacina contra o sofrimento – depende de uma construção interna, de um aprimoramento afetivo interior. É objeto de estudo milenar das religiões e da filosofia. Não é à toa que, num tempo em que se desistiu do debate sobre o divino e sobre a elevação do ser a algo transcendente à matéria, a depressão tenha se instalado epidemicamente.

A vida humana é mais do que os olhos veem. Ainda que tentemos nos reduzir a debates e ideias, somos sentimento. Somos espírito, seja este corpo imaterial do jeito que você puder entendê-lo e aceitá-lo.

Então Bird Box traz, de uma maneira (digamos…) moderna, a ideia de que a salvação depende do que sentimos e das nossas ações para combater o sofrimento que costuma estar ao nosso redor. Se nos desfocarmos desse sofrimento redundante, se optarmos por enfrentar a vida sem nos atentarmos ao que nos traz dor, nossa vida seguirá. Seguiremos.

Nada nesse debate é novo. Tudo isso sempre esteve em pauta. Apenas abandonamos o debate e, como resultado, sofremos. Buda ensinou que a vida é sofrimento. E continuou: o sofrimento tem causa; mas ele um dia acaba; existe um caminho para isso.

Quando acreditamos que há algo além do que conseguimos ver mudamos nossa vida. Bird Box, de uma forma até juvenil, conseguiu dizer isso a nossa geração incipiente.